No Brasil, a gente caiu no conto da democracia racial, um mito popularizado pós-período escravagista. Enquanto isso, aprovamos leis racistas cujos reflexos são sentidos diariamente.
Por: Cecília Olliveira
‘NO BRASIL, NÃO HOUVE APARTHEID’.
Essa é uma frase comum de se ouvir vinda de quem quer explicar que, por estas bandas, não aconteceu nada similar ao que ocorrido na África do Sul ou nos Estados Unidos, onde a discriminação estava nas leis e em placas que segregavam pessoas negras. Escolas, empregos, votos. Preto sai, branco fica.
Quando assisti o documentário “13º Emenda“, minha sensação era: aqui também! Aqui também! O título se refere à emenda da Constituição dos EUA que aboliu a escravidão no papel. E só no papel.
O documentário mostra como é a vida dos afroamericanos, analisando a correlação entre a criminalização da população negra e o boom do sistema prisional do país. E tudo o que vem no meio disso.
No Brasil, a gente caiu no mito da democracia racial, popularizado pós-período escravagista que cunhava a “paz entre as raças”.
Essa ideia, junto com a fábula do “povo cordial”, consolidou a ideia falaciosa que o Brasil era uma espécie de “paraíso mestiço”. Muita gente ainda está enredada nesse conto de fadas. Isso fica particularmente evidente em novembro. O Apartheid à brasileira é assim: no discurso, democracia racial; na prática, açoite disfarçado de lei e ordem, como você lerá abaixo.
Caso de polícia.
Em 1822, o Brasil declarava independência de Portugal, e o comércio escravagista entrava em declínio. Havia no Brasil muita gente preta na rua, sem emprego e com raiva por tudo o que havia sofrido. E isso apavorava as elites. Como conter essas pessoas?
Para começar a resolver o problema, foi publicado o Código Criminal do Império, de 1830. Ele estabelecia, ao mesmo tempo, o controle e regulação da vida de pessoas negras nas cidades e colocava obstáculos a insurreições ou revoltas. A insurreição foi criminalizada, e pessoas livres que encabeçassem os levantes eram punidas. A mendicância e vadiagem também viraram crimes. Imagine que você não tem nada, mas também não pode pedir. E nem perambular em busca de comida. A primeira Constituição, de 1824, também se fundou na escravidão.
Decreto nº 145, de 11 de junho de 1893, que determinava a prisão de mendigos, vagabundos, vadios capoeiras e desordeiros em colônias fixadas pela União ou pelos estados;
Decreto nº 3475, de 4 de novembro de 1899, negava o direito a fiança a réus vagabundos ou sem domicílio e autorizava incursões policiais sem controle judicial, especialmente em regiões onde havia mais negros.
Lei nº 4242, de 5 de janeiro de 1921, que fixou a idade penal aos 14 anos e autorizou a criação de um serviço assistencial às crianças abandonadas;
Código de Menores, de 1927, que criou a categoria do “menor infrator” – na prática, consistiu numa justificativa moral para reprodução de representações estereotipadas de meninos negros.
Já o Código Penal e Processual Penal de 1940 e 1941 nasce sob a luz do mito da democracia racial, da identidade nacional e tenta versar sobre igualdade, mas mantém a discriminação e a desigualdade. No Rio, de 1938 a 1969, o número de presos condenados no sistema penitenciário passou de 3.866 (3.790 homens e 76 mulheres) para 28.538 pessoas (27.726 homens e 812 mulheres).
No Estado Novo, a Frente Negra Brasileira foi posta na ilegalidade; e ativistas negros; perseguidos e criminalizados. A capoeira e o candomblé eram fiscalizados e monitorados.Só neste ano, a Polícia Civil do Rio de Janeiro devolveu objetos sagrados para as religiões de umbanda e candomblé, apreendidos entre 1889 e 1945. E foi a primeira a fazer isso. Na ditadura militar, bailes e outras manifestações culturais da comunidade negra foram combatidos.
Com a Constituição Democrática de 1988, “segurança pública” passou a ser um direito social pela primeira vez. Mas, na prática, não deu um novo formato às polícias, que foram ficando cada vez mais militarizadas. A polícia seguiu agindo como agia antes da democratização, como grupos de extermínio. Há incontáveis casos, como as chacinas de Acari, Candelária e Complexo do Alemão, no Rio; no Crespo, em Manaus; em Messejana, no Ceará, além do massacre do Carandiru, em São Paulo. A maioria das vítimas desses massacres era negra.
Em 2018, os negros representaram 75,7% das vítimas de homicídios, mesmo sendo pouco mais da metade da população brasileira. Isso é ainda pior nas regiões Norte e Nordeste. Roraima foi o estado com a maior taxa: 87,5%. Em dez anos, assassinatos de negros aumentaram 11,5%. Os de não negros caíram 12,9%.
Os negros também são a maioria no sistema carcerário, cerca de 64%. Um terço deles sequer foi condenado ainda, são presos provisórios. Muitos deles estão atrás das grades com base na lei de drogas, aprovada em 2006 e que não prevê critérios objetivos de diferenciação entre usuário e traficante.
A lei de drogas acabou por reforçar a ideia racista de Nixon, o ex-presidente norte-americano que instituiu e exportou essa política mundo afora. John Ehrlichman, o então chefe de política doméstica dos EUA, admitiu, em 1994, para o jornalista Dan Baum o real teor da política de drogas ao afirmar:
“Na campanha presidencial do Nixon em 1968, e depois na Casa Branca, nós tínhamos dois inimigos: a esquerda anti-guerra e as pessoas negras. Entendeu? Sabíamos que nós não podíamos criminalizar quem era anti-guerra ou negro, mas convencendo a população a associar hippies à maconha e negros à heroína, e depois criminalizando fortemente os dois, poderíamos desestabilizar ambas as comunidades. Poderíamos prender seus líderes, invadir suas casas, impedir suas reuniões e caluniá-los todas as noites nos jornais noturnos. Sabíamos que estávamos mentindo sobre as drogas? Claro que sim.”
Não há como descolar essa realidade de um sistema de investigação mambembe, que se escora no racismo, lá e cá. Mais recentemente, pessoas negras têm sido acusadas e condenadas com base em fotografias antigas, retiradas de redes sociais e que sequer deveriam estar de posse da polícia. Após vários “erros” serem divulgados, o STJ interveio e decidiu que reconhecimento por foto não serve para embasar condenação.
Mas como vimos ao longo dos anos, um canetaço não basta. Precisamos parar de acreditar que uma assinatura resolve as coisas. As pessoas que alimentam este sistema precisam ser responsabilizadas diretamente; e as políticas reparadoras, estabelecidas. O caminho ainda é longo.
O deputado federal Celso Russomanno, candidato pelo PP ao governo de São Paulo, durante entrevista para a TV Estadão, na sede do Grupo Estado, na zona norte de São Paulo.
disse não haver diferença entre brancos e negros no Brasil.
Normas eugênicas
Celso Russomanno, candidato a prefeito de São Paulo, uma das maiores cidades da América Latina, disse há poucos dias:
“Fui criado por uma mãe de leite negra. Não vejo diferença entre negros e brancos”. Ele também lançou os clássicos “tenho um amigo negro” e “namorei uma negra” para criticar uma ação no Dia da Consciência Negra. Durante muitos anos, foi comum ver em anúncios nos jornais a busca por “preta, com muito bom leite, prendada e carinhosa”. O tempo passou, e o racismo ficou.
Negros têm menos acesso às escolas e às universidades, menores salários, menos mobilidade social, menos acesso a serviços de saúde, crédito imobiliário e cargos em postos de destaque em grandes empresas. Mesmo sendo a maioria da população brasileira, por que isso acontece?
Aqui temos uma ideia:
Ainda na Primeira República, o Decreto nº 528, de 28 de junho de 1890, sujeitava à autorização especial do Congresso a entrada de pessoas vindas da Ásia e da África. O objetivo era clarear a população.
Em 1921, deputados propuseram uma lei que determinava: “fica proibida no Brasil a imigração de indivíduos humanos das raças de cor preta”. Dois anos depois, foi apresentado projeto que dizia: “É proibida a entrada de colonos da raça preta no Brasil e, quanto ao amarelo, será ela permitida, anualmente, em número correspondente a 5% dos indivíduos existentes no país”.
Anos mais tarde, o Decreto-lei nº 7.967/1945, sobre a política imigratória do Brasil, estabelecia que o ingresso de imigrantes no país deveria se dar observando “a necessidade de preservar e desenvolver, na composição étnica da população, as características mais convenientes da sua ascendência europeia”.
O ideal de tornar a população gradativamente mais branca era atrelado à ideia racista de superioridade dos brancos. A Constituição de 1934 garantia o ensino primário gratuito, mas determinava, em seu artigo 138, “estimular a educação eugênica” – o governo estava apostando no “aperfeiçoamento da raça”. A educação das pessoas brancas era priorizada. O pensamento da época era de que eles se misturariam com a população brasileira, que era preta demais.
Essas políticas que favoreciam imigrantes brancos europeus nos coloca de cara com outra falácia: “Ah, mas meu avô veio da Itália. Era pobre, trabalhou muito e venceu!” Não é difícil escutar isso de quem tem o intuito de dizer que negro é preguiçoso. Não quis trabalhar como os imigrantes europeus.
Esse raciocínio não leva em consideração que os europeus vinham ao país a convite, com a viagem paga – e não como mercadoria –, recebiam terras e “bolsas” do governo. Não era só se esforçar.A elite que, pressionada, votou o fim da escravidão, fez tudo o que pôde para evitar a reforma agrária, enquanto os donos de terras e escravos no Brasil foram indenizados para seguir a vida depois desse “baque econômico”.
As pessoas negras não eram bem-vindas e não tinham o mesmo acesso a escolas e à propriedade. Prova disso são as lutas por posse de terra de quilombolas que ainda não teve fim. Há alguns dias um quilombo na Bahia venceu na justiça uma queda de braço de meio século contra a Marinha. A alegria durou pouco. Houve recurso e até o acesso à água da comunidade local foi cortado. O ciclo da história não foi quebrado. Ele mudou de roupagem. O que disse Joaquim Nabuco, há mais de uma centena de anos, segue valendo: “Não basta acabar com a escravidão. É preciso destruir sua obra”.
fonte: The Intercept Brasil.